sábado, 8 de setembro de 2007

a porta

Certa feita de meu tio me impressionou. Ele mantinha uma porta sempre fechada que dava para um não sei quê de possibilidades. Eu era seu filho adotivo e todos os meus primos queimávamos de tentação pelo olhar que aquela porta encerrava para além. Depois, ninguém sabia.

Todos os medos. Todos os segredos pra tentar violá-la circundavam os portais da porta, onde a gente se recostava e dormia de tanto sonhar. Se penetrássemos com um olhar, que fosse, uma fisgadela de luz e já todo desejo e todo enfim estaria sarado, que toda pergunta é uma ferida. Mas não havia nada. Nenhuma fresta da porta entreaberta, nenhuma falha ou fechadura. Fenda alguma se haveria de abater sobre a porta. Para nós ela era uma presença, um espectro que se mantinha calado, feito fantasma de um sábio milenar que preferia recuar-se sobre si, estático, fixo e ereto. Um ser sagrado que optava por se manter mudo, intacto.

Velhos olhares cansados cochilavam nos umbrais nos ensinando a penetrar lentamente todo aquele vasto mar de madeira selada. Imaginávamos. Era tudo o que podíamos fazer. Imaginar, ver além do que se vê.

Meu tio fazia questão de mencionar a porta em suas conversas de domingo, como se para nos fazer esquecer de que ela estava lá. Quanto mais falássemos na porta, menos ela estaria lá. Meu tio dizia que só existe Deus porque não acreditamos em Deus. Falava nela como se pudéssemos esquecê-la. A porta. Um limite, uma fronteira que só seria aberta quando fosse a hora, como o fruto esperando para ser devorado. Cada um de nós ao seu tempo passaria pela porta. Um por um. À medida que a porta fosse se abrindo. Até que pudesse figurar escancarada pela casa. Rasgada, arreganhada pelo tempo, nosso tempo. Boca aberta de gente que não dorme mais, está morta! Por enquanto, ela se mantinha selada.

Nenhum de nós havia passado. Já tínhamos duzentos anos e nenhuma fresta se abrira... meu tio era o único que fazia com que a claridade invadisse a região proibida, a região além-porta. Trancafiava-se lá antes das conversas de domingo e passava horas sem fazer barulho. Dali, a respiração incessante de quem descansava, como um universo a se expandir que se contraía. Saía de lá um perfume suave e depois ele nos ensinava que Deus era feito de cheiros.

Não havia nenhuma história que ela nos contasse, mas nossa imaginação criava de si histórias tantas que já não sabíamos o que era a porta e o que imaginávamos. Matéria abstrata, pensamento concreto: a porta, presente nos nossos devaneios, no nosso canto. Nas nossas brincadeiras de boneco havia sempre um castelo com uma porta sempre cerrada. Na nossa ciranda, no quintal, sob o pé-de-manga-rosa a canção e uma donzela do outro lado da porta, chorando e nós chorávamos a porta que não se abria. Vivíamos ali, sob a voz sempre ali de meu tio Adamastor.

Foi que uma noite eu acordara e caminhava até a cozinha a passos lentos na lonjura que se há entre as distâncias quando se ainda é pequeno, quando ainda é escuro, gostando de ouvir e de ver os meus primos e meu tio dormirem como se agonizassem, como se o ronco fosse a última respiração se debilitando para a morte. Quando todos dormem, a casa é um cemitério. Os mortos roncam e os armários rangem. Todos dormiam, só as árvores se mantinham despertas. O medo é quando o real é mais real que o real.

Com sono e titubeando, caminho e a porta, com todos os seus segredos anoitecidos; a porta povoada de pássaros noturnos que dormiam nas trepadeiras que cerravam seus ferrolhos, como um monstro surgido da noite, no nada, a porta estava ali.

Recostada, balançava como uma criança no jardim da frente e seu balançador de pneu. A porta mastigava e me chamou.

Devagarzinho. Lentamente. Da garganta aberta, a porta rangia o grito agudíssimo que só eu, ali, ouvia. e eu seguia. Sub-repticiamente eu seguia. Estava cada vez mais dentro da verdade, penetrando como um cão, farejando, ânsio, soterrado de sonhos.

Quando não se quer mais existir, antes de sair, deve-se apagar a luz. No escuro, a realidade inexiste. O ar tingido é um livre-arbítrio. Céu sem estrelas. No escuro, com os olhos fechados, a responsabilidade concentra-se em ouvir.

Para ouvir bem, dentro da verdade, é preciso engolir a saliva. Dentro da verdade, o ar pressiona os ouvidos e o vento tampa nossos tímpanos. É preciso engolir a saliva. Bem dentro da verdade, além da porta, o que meu tio escondia: frágil como a chama de uma lamparina, a sala... ... completamente... vazia...

quinta-feira, 6 de setembro de 2007

Diálogos de João II

−O tubarão come peixe, mãe?
− Come.
− Ele assa o peixe pra comer?
− Não. Ele come o peixe cru.
− Igual o Japonês, né, mãe? Igual o japonês.