domingo, 15 de junho de 2008

íntegra da entrevista publicada pel'O Povo, hoje, domingo

1. Como a internet interfere no seu processo de produção e qual a importância desse meio para a literatura?

Existe um ensaio do Carlos Emílio chamado “A vitória da imaginação literária na internet", publicado em 2005, na cronópios (www.cronopios.com.br). Ele faz parte dessa discussão gigante anterior à própria internet, inclusive. Olhe, observe as revistas (que se dizem) de arte, a Bravo, por exemplo, é um panfleto, o panfleto mais caro da indústria cultural do eixo Rio-Sul. Onde está a literatura ali? Observe os principais jornais do país, a Folha, o Jornal do Brasil, O Globo, observe o próprio O Povo; onde está a literatura aqui? Como dizia o poeta alagoano Jorge de Lima, “a imensa metrópole baniu a poesia”! Desde os parnasianos, a literatura foi domesticada, podada, castrada; ela foi disciplinada. Até nas escolas, onde existe uma disciplina chamada “Literatura”, o que se estuda ali está muito mais para História da Literatura, que para Literatura mesmo. A vida utilitarista que a gente escolheu pra continuar vivendo excluiu a arte e a literatura de seu cotodiano. A palavra perdeu a sua força, seu poder original de fundar consciências, de re-fundar a história. A própria literatura foi chamada de ficção, ora vejam só! Veja só, a internet é o lugar da liberdade total, aqui se pode tudo, aqui, nessa sala escura em que se materializam as vozes e criamos personagens de nós mesmos, até um bate-papo se torna dramaturgia. É o lugar da hiperliteratura, da supraliteratura. Há um conto meu publicado na corsário (www.corsario.art.br) chamado “Coito Interrompido". É um retrato do fetiche, da permissividade e da perversão do sexo virtual e das personagens que interpretamos ali, com citações da literatura erótica e da poesia marginal. Veja, aqui, só nesses dois, três minutos, mencionei três textos publicados pela internet. Os sites que se dedicam à divulgação da literatura estão abarrotados de textos. É uma revolução. Olhe o artigo do Carlos, é a vitória da imaginação literária na internet mesmo. Os blogs cada vez mais divulgados, e seu uso cada vez mais difundido. É uma Era polifônica, em que todos os sons, todas as idéias, todas as aberrações e maravilhas da psique humana encontram escoadouro na internet, esse espaço da democracia real. O único lugar em que a democracia deu certo é na internet, mas também dentro dela, para quem está dentro dela, porque além dela, há também o que a gente chama de exclusão digital, né?

2. Bolsas de criação literária/prêmios/editais — Comente a política de editais, as bolsas de criação literária ofertadas pelo Estado e os prêmios de literatura. Qual a importância e os riscos embutidos nesses mecanismos?

Há cerca de um ano, mais ou menos, publiquei na cronópios um ensaio intitulado “O Programa Petrobrás Cultural 2007 e a História da Literatura" em que reflito, ao longo de dez páginas, a respeito da relação sutil que há entre estes editais de fomento e a constituição da própria história da literatura; uma discussão que passa diretamente pela veia do cânone. Somos seres gergários, já diria Uirá dos Reis, poeta e contista daqui também, e, justo por isso, tendemos a nos organizar em grupos. Nesse tal Programa, dos 423 projetos ali inscritos, os 23 contemplados foram do eixo Rio-Sul, ou seja, São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e do estado que crê, agora, compor a região sudeste, a Bahia. A questão fica estranha quando vemos que a comissão de seleção foi composta por cinco membros dos respectivos estados. Em 2005, a PubliFolha publicou a antologia Literatura Brasileira Hoje de Manuel da Costa Pinto, onde aparecem 60 escritores, sendo 43 do eixo Rio-Sul. Qualquer semelhança com o resultado do edital do Programa 2007 não é mera coincidência. Por uma limitação humana mesmo, não por má fé. Risos. Seria ingenuidade imaginar que o mesmo não ocorra aqui. É só olhar os grupos e pessoas premiadas nos últimos cinco anos pelos editais de fomento― não só a literatura ― no estado. Está lá, visite o site. Até hoje há uma polêmica danada que gira em torno da Caos Portátil. Seja como for, para fazer um levantamento estatístico do que acho, façamos o seguinte cálculo: quantos habitantes tem o estado? Quantos blogs de cearenses existem? Quantos trabalhos inscritos nos editais? Quantos são financiados? Com os recursos que temos, é preciso haver um processo seletivo cinicamente rigoroso mesmo. E, mais, pode haver critério objetivo quando se trata de arte? Tenho um texto no meu blog cujo título é justamente esse, “Por que prefiro os meus amigos". Risos.

3. Crítica literária — Como você enxerga a crítica literária feita no Ceará?

Ixe! Existe? Risos. Olha, sempre tive um olhar de trevés para a crítica. Lembro que na época da graduação, soube de uma frase do Jean Sibelius em que ele diz assim “Não se preocupe com os críticos, jamais, em tempo algum, se ergueu uma estátua sequer a um crítico". Risos escandalosos. Prefiro a análise, a reflexão de que a literatura pode ser fonte. A literatura não quer ser discutida, ela quer discutir. Até hoje, um amigo, contista de Crateús, o Luciano Bonfim, espera que eu escreva uma resenha, um comentário sobre o último livro dele; o próprio Carlos quer ainda que eu resenhe seu último livro de contos, O romance que explodiu (ó o nome do livro! É um fanfarrão mermu um home desse! Risos). Mas eu não sei fazer isso. O que faço e tento instigar meus alunos a fazerem é pensar sobre o mundo, sobre si, sobre o homem, a partir da amostra do real que é a literatura. Roland Barthes dizia que a literatura, não importa a escola literária a que ela se vincule ...realismo, surrealismo, realismo mágico, fantástico... ela é o real, o próprio fulgor do real, da subjetividade do real. Discuti sobre isso num texto chamado “O poeta como guia da humanidade", também publicado pela cronópios.

4. Formação do escritor — O que você pensa a respeito dos cursos de graduação cuja missão é formar escritores? É possível aprender a ser escritor?

Mardonio França, da corsário, publicou um pequeno ensaio meu chamado “O que é escrever?" e acho que essa pergunta que você me fez passa necessariamente por essa outra. Bachelard dizia que o bom poeta é aquele que nos faz querer ser poetas, que é aquele de quem lemos algo ao mesmo tempo em que dizemos ‘Putz! Eu poderia ter escrito isso!’, ou mais ainda, ‘PQP! Eu DEVERIA ter escrito isso!’ Risos. Se é possível aprender a ser escritor? Acho que sim. Mas a querer ser escritor, é como diz uma amiga também contista, a Érika Zaituni, “há coisas em que não é possível tocar, elas é que, se quiserem, nos tocam". Sim, é possível sim. Agora, daí a ser um bom escritor, já não sei. São caminhos, né? E quem pode dizer se funciona ou não antes mesmo de tentar? Existe uma paixão, um frisson, um amor, um sabor em escrever. O poeta, o escritor, ele escreve como respira. Ele é aquilo que ele escreve. Aquilo que ele escreve não foi escrito por ele. É a sua tradução. A sua antropomorfização. A sua verbalização. É ele noutro plano, o plano de um ser mais sutil, um ser de linguagem. E aqui aproveito para citar um trecho desse meu texto... “Essa paixão não pode ser ensinada. Não há como ensinar o amor à palavra. Essa paixão, esse amor se constroem espontaneamente, por anos e às vezes por décadas, por toda uma vida! É resultado de uma relação íntima entre o ser e a sua dimensão enquanto palavra. É o fruto do ventre imaculado da solidão, porque escrever é o ato de maior solidão que pode existir. Na palavra, o texto é você e você está sozinho, como uma casa abandonada habitada por espíritos e fantasmas".

5. Quais são os seus autores de cabeceira?

São poetas. São filósofos. Não leio muitos contos. Leio alguns, conheço alguns, gosto de alguns, mas minha literatura é toda de aforismos, porque entendo que o aforismo é o insight, é o que a artista plástica Érika Zíngano chama de sacação, é um mergulho no instante-já da Clarice Lispector. Pausa. Sim, né? Mas quais são? Jorge de Lima, Mario Quintana, Ayla Andrade, Manoel de Barros, Oscar de Oliveira Magalhães ― um senhor de Ubajara, drummondiano antes mesmo de Drummond― Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Alan Mendonça, Carlos Emílio, Filgueiras Lima, Fernando Sabino, Marcelo Bittencourt, Fernanda Meireles, eita... e, dos filósofos, o maior de todos que é Gaston Bachelard. Putz!