sexta-feira, 15 de junho de 2007

uma coisa que eu aprendi há muito tempo
"ser criança
é se esconder
e não ter medo de ser achado"

quarta-feira, 13 de junho de 2007

minha língua escreve
belos poemas de amor sobre tua pele deserta.
Tua pele, o pergaminho mais antigo.
te reencontro aqui,
em teu sono secular,
em minha cama macia
nua,
vestida apenas
com minha poesia.
vestígios de ti por toda minha carne
esquecer, pensamento que padece.
instalei oásis de ti
sobre minha pele deserta
povoar de dedos tua pele
essa terra infestada de cheiros
o poema táctil da tua pele

terça-feira, 12 de junho de 2007

antes da viagem...

fortaleza ainda é uma cidade

Não somos um porto, tampouco uma ponte, estamos perto de antenas - fico sempre pensando sobre essa cidade, fortaleza dos poetas, ou melhor, plantações de poetas - do hermetismo de eduardo jorge à loucura de mário gomes, de marcelo bittencourt à ylo barroso - ao alcides pinto e seus punhais - ivaldo e uirá dos reis - nuno gonçalves - e tantos tantos outros - todos encurrulados nessa cidade sem fronteiras.


temos os alpes, o dragão, o noise, o chorinho, jardim iracema, ideal, benfica, praia iracema. titã. internete e o cerco dela, o trema, as mesas de bares.

essa reflexão tem um traço geográfico - fortaleza é uma cidade - ilha. todas as cidades estão a mais de 500 km - é um cerco solitário.


é muito fácil entender nosso desentendimento - basta recorrer a história passada : nossos índios não se entendiam nunca, eram bravos e gostavam de mocororó e pajelança e guerra e cangaço - e nada de entendimento com eles mesmos, com os portugueses, franceses, holandeses ...

nada ! do cunhadismo do darcy só pegamos a primazia da chegada, depois, mau agouro e brutalidade.

basta ver na comida e no escárnio.

um gringo chega e quando passa a ser tratado de filho da terra, é fio da égua para todos os lados. te alue amarelo.

em raros momentos, nos reunimos, mas esse momento sempre foi de força e de forca, foi nos tempos "do nascimento da nossa academia de letras e ciências", na padaria espiritual, no movimento modernista cearense, na massafeira, na parafernália e penso que agora. muito populismo - é preciso.

amanhã, teremos o lançamento do livro de léo mackellene de fortaleza e do mundo.

amanhã - ele vai pegar cada pedacinho de fortaleza e colocar debaixo do braço e levar mundo a fora - como tantos outros fizeram ...porque santo de casa não faz milagre, só quando chega de são paulo, como o santo glorioso cidadão instigado.

vai levar com ele a corsário, os poemas, os videos que mostrará na viagens para seus amigos da estrada. quem sabe não volte vitorioso do circuito como os nossos caixeiros-viajantes dos tempos do nomadismo e dos árabes.

é isso, amanhã terá tudo para a casa do grande henrique dídimo reviver esses momentos que a história pára com os encontros da pajelança:

uirá dos reis, eduardo jorge, julio lyra, mardônio frança, ayla andrade, ylo barroso, pedro salgueiro, carlos emílio correa lima, joyce, wilton matos, italo rodrigues, muitos muitos a lista vai p'ra lá de setenta.

henrique dídimo irá fazer um documentário daqueles.


m. frança
www.corsario.art.br

segunda-feira, 11 de junho de 2007

Fortaleza-Brasília

Escolhi o primeiro trecho por via térrea mais por questões financeiras que por questões político-filosóficas. Evidentemente, não poderemos fugir disso, mas...

Às 9:33 galgamos a última construção. Aqui, a cidade termina. Ali, o último muro.

Egberto e Francisco são meus vizinhos de viagem. Egberto, de Ibiapina, a Serra que separa o Ceará do Piauí, quando soube que sou escritor, esperou um tempo e sentou-se atrás do meu banco pra cantar uma canção a la Amado Batista, de quem se diz fã número um.

Ele é casado (sem aliança) pela segunda vez. Sua primeira mulher hoje vive em São Paulo com um filho seu e casada com um outro homem, me diz isso de olhos baixos e voz furtiva. Está indo para Brasília vender uma casa por 17 mil. “Porque se não a negada invade!” diz ele. Deixou sua mulher, Elane, em Fortaleza, com seu filho de um ano. Discutiram e no dia da discussão, dia 13 de maio, ela escreveu uma carta pra ele. Me mostrou a carta com água nos olhos. Letra com alguns erros de ortografia e veleidades literárias. “Foi legal o tempo que te conheci. O lugar inesquecível. O tempo deixou uma marca: nosso filho” essas coisas. Ele sente saudade. Passará 7 meses por lá e toca violão, compõe canções e gosta de Zezé Dicamargo (sua voz é até um pouco parecida! Arriégua! Nã!).

Francisco é um tipo de olhar ingênuo mas com certa ânsia de aprender e ensinar coisas. É um sujeito ligeiramente afeminado, de riso fácil, ajeita as mangas curtas da babylook não se sabe se por cacoete ou se por frio. Cabeleireiro que não concluiu o ensino fundamental, “parei na sexta série, eu parei!”. Gosta de cuidar do corpo e entende um tanto sobre alimentação. 34 anos e relutente quando sugiro que prepare cursos sobre culinária e saúde. Diz que o SEBRAE e o SENAC estão preocupados com a titulação e não com o conhecimento prático. Se diz sem cabeça para voltar a estudar e cursar uma faculdade. Nesse momento, duas professoras certíssimas de si, voltando de um congresso em Fortaleza e que descerão em Petrolina-PE, diz que ele está com baixa auto-estima. Me rio um pouco e retomo a conversa. O ônibus chega em Juazeiro do Norte-CE.
Quando voltamos pro ônibus, ele me dá uma edição sem data, capa-dura de um livro chamado “As hortaliças na medicina doméstica” dizendo que “tem também ‘as frutas na medicina doméstica’”. Mas que ele não tem.

Quando da leitura d’ as hortaliças na medicina doméstica

Querido Carlos Emílio,
tenho pensado desde que soube da descoberta de um planeta semelhante ao nosso em algo que, mesmo ficcional, me lembra você.

Tive logo a imagem de que nascia ali, com aquela notícia, a esperança do recomeço, a fé de que aquele planeta recém-descoberto será o nosso refúgio espécie-espacial. E pensei que somos, de fato, um vírus. Um vírus que a tudo corrói e que vai devorar esse planeta, torná-lo imprestável e depois migrará para outro. Isso me faz pensar na tese de que somos extra-terrenos, de que viemos de outro planeta.

Disseram que o novo planeta é muito maior que esse em que vivemos e que, portanto, a gravidade é maior. Isso significaria que se nos mudássemos para lá, seríamos gigantes chegados frente às criaturas que por ventura existissem por lá.

E se de fato tivermos vindo de outro planeta? E se de fato somos uma espécie de ser criado para destruir a criação? Que habita de tempos em tempos planetas que serão devorados, no tempo cósmico, em um dia? E se o planeta de onde viemos for menor do que esse onde habitamos? Sendo assim, ao chegarmos aqui, não teríamos sido também gigantes? E os relatos de toda a literatura obre estes gigantescos seres que viviam isolados nas ilhas, nas florestas, nos campos como Gargântua? E se os ossos dos dinossauros forem, em verdade, ossos humanos que, devido ao peso de seus corpos gigantes, andavam curvados?

No livro que Francisco me emprestou pra ler, o capítulo devotado aos malefícios da carne relata uma experiência alimentícia feita com coelhos a base de carne. O capítulo menciona que três gramas de carne em um animal não habituado ao regime cárneo seria responsável pelo desencadeamento de enterite e diarréia que levariam o coelho a óbito em seis ou sete semanas. Doses mínimas, no entanto, em centigramas até, poderiam iniciar um processo semelhante ao de intoxicação pela carne em humanos e, habituado, apresentaria uma estrutura óssea e corporal enfim, massa muscular, muito alterada de seu original, reduzida inclusive.
Levando isso para o fato de termos chegado aqui gigantescos, será que nosso hábito de comer carne teria nos tornado menores do que éramos?

Sobre generosidade. Uma carta para o poeta Alan Mendonça.

Preciso de pouco, Alan.

Preciso de algumas roupas, paliativos médicos, papel, caneta, lápis e um maldito marca-texto que não me deixa em paz. Preciso de pouco e é por isso que sobra espaço na mala. Houve um tempo em que eu precisava de menos ainda.

Meu livro, Alan, fala de uma estrada, uma longa jornada até a fonte. De um estrada repleta de árvores que caminham juntas de nós, nos ensinando, tentando nos ensinar alguma coisa. A estrada entre árvores e túmulos.

Cada poeta que levo é uma arma e um escudo. Cada poema compõe uma folha da árvore e seu sumo. E cada trecho, cada citação é uma voz que se alevanta no cortejo. Caminhamos juntos. Vamos de mãos dadas como diria Drummond.

Levo todos comigo porque ali não sou eu, você, Mardônio, Bittencourt, Virgílio, Ylo, Carlos Emílio, Ayla, Uirá, Luciano... Ali, somos um só, todos um só. A mesma espécie poética. Refazendo-nos e refolhando-se a cada dia para recompor tudo, para recompor o mundo.

Somos poetas diferentes, é verdade! Porque há árvores diferentes. Mas somos da mesma espécie de seres, da mesma espécie arbórea. A mesma poesia feita de retalhos de voz de todas as cores a caminhar como fantasmas pelos livros inteiros.

Uma vez vi uma árvore sozinha. E tive pena de sua ingenuidade. E me aproximei para abraçá-la, enternecido. E à medida que me aproximava, vi que pousados nos seus galhos havia centenas de seres alados, dormindo sob as folhas. E vi que aos seus pés, formigas vinham lhes fazer morada; que dentro do seu tronco repousava uma grande ave noturna; vi que de dentro de seus frutos emanava uma luz branca onde havia rabiscada toda a história, toda a memória das antiguidades. “As árvores são fáceis de achar” canta Bittencourt querendo caçoar de mim, mas eu ali compreendi que não há ser em maior movimento. Porque seu movimento é para cima, para o alto; e para baixo, rumo ao profundo segredo do mundo; e para sempre. Infinitamente grande. Infinitamente sem fim.
Deleuze estava errado. Livre não é o rizoma. O rizoma é uma árvore guardada. O sonho do rizoma é ser árvore. E ali, comigo, cada poeta é uma árvore, cada poema é um fruto, cada palavra uma semente para repovoar as consciências.

Pela janela do ônibus, a última cidade da Bahia

Aqui o cenário é marrom e as folhas outrora verdes à beira da estrada entupiram seus poros de barro, um pó-de-barro que mesmo no vidro lacrado quer me fazer espirrar.

Minhas expectativas pra Brasília? Não sei. Depois do lançamento na casa do Henrique, espero pouco. Uma das coisas que aprendi por lá foi que a expectativa cria mundos inexistentes só para ter o doce prazer de nos ver destruídos.

O cenário é marrom há horas. A vegetação cedeu lugar a um descampado dourado pelo sol dessas horas. No descampado, bois-de-lombo todos brancos pastam. Pertencem à fazenda Xique-Xique que avistamos em minutos. De um lado e do outro da estrada, nada. Terreno queimado. Estamos próximos ao centro-oeste do país. É descampado sem fim, a dar na vista. Povoados por gado de toda espécie. Não há nada de novo sob o sol. Uma infinidade de terra para bois e nenhum sinal de casebres ou barracas. Quantos foram expulsos dali? Quantos morreram? E continuam avançando. Há tratores quando o pasto termina, uma hora e meia depois de onde começa. E o fogo também desmata, continua. O fogo é o primeiro sinal da chegada da civilização.

Após um pequeno intervalo de mim, onde, parece, a vegetação luta para se recuperar, um novo imenso descampado se abre para abraçar os olhos. São plantações de soja. Hectares infindos com um maquinário de irrigação que vai ao horizonte. Água. O chão riscado por dentes gigantescos de quem arranca raízes.

A entrada da cidade revela o grau de sofisticação da cidade que desponta. Casarões eqüidistantes sobre o cenário desnudo aparenta a cidade ao sul da América do Norte. D20s, Hiluxes, S10s e por aí vai são os carros que avisto à entrada da cidade colorida e iluminada. Um centro urbano em altíssimo grau de elevação tecnológica no meio do cerrado. A estrada divide a população dona da cidade e os pobres que trabalham para ela.

O nome da cidade? Luís Eduardo Magalhães.

Primeiras impressões sobre Brasília.

Cheguei com alguma coisa que não conseguia explicar. Um medo, uma ânsia, um pânico, sei lá. Se Uirá acha que Fortaleza é uma cidade facistinha, precisa conhecer essa cidade.

A vastidão só dilui a alma e aqui é o reino do vasto. Imensas áreas de tudo. Aqui, tudo é imenso: o verde, os parques, os clubes, os prédios, ainda que baixos, imponentes, quadradões, gigantescos blocos de vidro e concerto. Agora, só agora, mais de dez anos depois de ter escrito é que eu vejo que são reais os “gigantes de vidro e concreto compõem esse lugar”. Aqui, tudo é realíssimamente real. Realissíssimo. Uma terra de superlativos: Ilustríssimo, Excelentíssimo... e até as árvores parecem falsas. O avesso de uma árvore: árvores de galhos rápidos como relâmpagos. Respiram sim, mas posso sentir sua saudade, posso experimentar sua tensão. Elas foram plantadas aqui. Trazidas de outros lugares aos gritos de “fiquem aqui! Eu sou o paisagista! Fiquem aqui! Cumpram o seu papel. Respirem! Vamos Respirem!”... uma cidade militaresca, militarizada. Aqui, até as árvores são escravas.

Léo Simão, um arquiteto que acabei de conhecer disse-me que venderam o sonho “Cidade Planejada”. Mas aqui não há sonho. Vi hoje, no Beirute, bar tradicionalíssimo “40 anos” ta lá, estampando na parede. O dono é um ex-garçon. A cidade tem quase isso. Pouco mais. Mas eu vi isso sim no Beirute. Pintores, desenhistas, músicos, poetas, artesãos, atores não dentro do bar, à margem dele. Ora erguendo telas a fim de mostrá-las. Ora recitando poemas ao ar livre a fim de vender um panfleto ao menos, um cartão da “Terapia do riso” (Até aqui!). Ora deixando desenhos em cada mesa para recolher depois. Encartes que não serão abertos. Sorte do Luigi, o cartunista, se não molharem com a bohemia de r$ 4,20. Um cara chamado “para os amigos Pepe. Para os conhecidos, Lopes”, um senhor espanhol com ares de trêbado fez minha caricatura e eu nunca percebi que tinha um queixo tão grande.

Funcionalismo público, estudantes londrinos de pirulito na mão, bebendo às pampas e os artistas rondando as mesas, mendigando atenção, disputando atenção com kibes, cervejas, vinhos baratos e veleidades. E ainda tendo que lidar com o olhar desdenhoso das dondocas filhas de donos dos BigBoxes de Brasília. Carlos Emílio, Fortaleza é o paraíso, nego véi.

Brasília, como diria Victor Ramil, “cidade rigidamente planejada e construída”. Aqui, tudo é imenso e opressor. Os prédios são suspensos. As pessoas são suspensas. Se eu dizia que em Fortaleza as pessoas moravam em gavetas, precisava conhecer essa cidade. Não há nada mais concreto que Brasília. Nada mais real do que pessoas morando em cubos de vidro e concreto.

Eu sou pequeno aqui. Pequenininho. Pequeniníssimo. E sem o meu amor por perto eu sou menor ainda.

Brasília, uma cidade de muitas voltas. Circulada por portões invisíveis. É impossível. Brasília é uma cidade de segurança máxima. Tire “segurança” porque aqui bandido é seguro. Fica o “máxima”, opressor, imponente. O velho Niemeyer imaginou uma monstruosa área de convivência, com clubes de vizinhança, inclusive. E deixou todos os prédios abertos embaixo, com livre passagem. Mas o medo dos prédios criou nos brasilienses paredes invisíveis, supra-sensíveis, dentro de cada um como num filme de Lars Von Trier.

O que esperar de uma cidade que cresceu daqueles que queriam, mais do que reconstruir uma vida nova, construir a sua vida nova? Cada um, cada um. O sonho não compartilhado de Niemeyer. Os escravos que se tornaram nobres. E Lula morando no Palácio da Alvorada é o maior ícone disso. Lula na Alvorada, putz, a estratégia de remediar a convulsão social: um ex-pobre no poder, um operário que hoje submete legitimando a submissão; um alfabetizado tardiamente no poder. E a ala burra da burguesia ainda quer tirá-lo de lá a fina força. Deixem ele lá! Deixem-no! Orgulho ferido da dondoquice brasileira e burra!

Que esperar de uma cidade que se divide cartesianamente em norte, sul, leste e oeste? Síndrome da paranóia urbana. Aqui, seu terreno não é apenas imenso, é fértil. Uma cidade planejada para se ter o controle. Vigiar e punir? Ninguém nem se vê, nessa cidade, quanto mais vigiar alguém. Vigiar exige tempo, e numa cidade de funcionários públicos, com seus carrinhos e suas carreiras estabelecidas, concursados, podendo chegar tarde e sair cedo do trabalho, quem vai se preocupar em vigiar o outro? Aqui?!!! Só se lhe convir. Aí sim, se vigia. Se vigia e se pune não porque é questão de justiça. Mas para tomar o que é do outro: lugar, emprego, namorada, idéia arquitetônica, que o diga Léo Simão.

Que esperar de uma cidade que tem como cartão postal imensíssimos blocos de concreto armado. Nem a palavra “concreto” consegue descrever essa concretude. Concretude que se sente no ar, nas ruas, nas árvores. Petrificadas árvores. Queres conhecer uma cidade? Olha suas árvores. Aqui, a bandeira positivista da Ordem e do Progresso nem tremula mais. Aqui, a chama do planalto sai de dutos de ferro enferrujado no alto de um bloco gigante e inútil de cimento. Esquecida. É proibido entrar lá. Mas não há quem vigie. Aqui, uma cidade que custou milhões e milhões e milhões de contos de réis, de cruzados, de cruzados novos, de cruzeiros, de cruzeiros reais, de reais... e ainda nem começou. O sonho armado de vidro e cimento de Dom Bosco que JK comprou e ainda devemos.

Só quem mora ou passa por aqui entende esse nome: legião urbana. Não é só um nome legal pra uma banda bacana dos anos 80. é triste, pesado, melancólico, árido apesar de ser cerrado. Não há, no país, cidade mais urbana e inespontânea que Brasília, desde sua fundação.
Acabei de acordar de um sonho intranqüilo. Aqui, até os sonhos são de pedra. E vim escrever. Mas não quero assumir essa paranóia. Minha avó enlouqueceu depois de ter visitado essa cidade. Comigo não. Essa paranóia não é minha. Eu tô aqui só de passagem.

Árvores de Brasília

Existe, em frente ao Palácio Buriti, naturalmente, um Pé-de-Buriti. O Buriti é uma semelhante ao nosso pé-de-carnaúba. Se você olhar direitinho no meio desse pé-de-buriti há uma espécie de remendo. É que certa vez, em sinal de protesto, um bêbado, dizem, cortou com uma serra elétrica o Pé-de-Buriti bem no meio.

No princípio, as árvores estavam sozinhas, eram sozinhas. Até que foram, todas elas, uma a uma, agrilhoadas pelas garras de tratores e trazidas para cá, como imensas rainhas sem reino. Lágrimas e seiva riscam o caule majestoso dessas árvores. São árvores monstruosas, um ser fantasmagórico, do tamanho de prédios de medo. Senhoras e, como diria Guimarães Rosa, respectivas árvores.

São Paulo, a terceira cidade.

Cidade construída por nordestinos. Largas avenidas andradeanas. Prédios não, são edifícios. Onde a respiração é pouca e as árvores não sobram. São Paulo. É difícil respirar em São Paulo. E até no Ibirapuera a civilização deixa seus traços. Rios e riachos mortos ou morrendo. Do alto, rios de tinta espessa, grossa, cinza. Cidade vertical. Cidade que trabalha. Aqui, tudo é mercado, comércio, business. Cidade de tanto para ver e pouco de sair de casa.

Na Av. Paulista, 13 graus no relógio enquanto um se acomoda em filetes de papelão, um senhor também mendigo se despede de uma mulher jovem com um beijo na testa e um “vá com deus” que comove. Gestos perdidos de delicadeza arfante. A flor no asfalto.

São Paulo, de uma urbanidade estranha, diferente de Brasília. Cidade de possibilidades e, portanto, enfalsa, escorregadia, sorrateira, a espreita de seus passos, sob vigília constante. São Paulo, a cidade que (quase) nunca dorme. No metrô, eu mesmo precisei de um lixeiro, procurei e não o encontrei. Segurei para ver se o havia dentro dos vagões e ainda assim não o achei. Esperei até a próxima estação, cinco ou dez minutos depois, um lixeiro com meu nome “Léo”. Grande. Letras amarelas em fundo preto. Como se me chamasse.

Aqui, tudo chama. Aqui, a chama fria das sombras. Aqui, procura-se o sol pelas calçadas. E nem chegamos na época mais fria. Quarta, dia trinta de maio, aniversário do Carlos Gadelhas, amigo d’ O quarto das cinzas e sua linda bandlider Laya Lopes e seu fiel escudeiro menino-pan Rafael Gadelha, o segundo dos Argonautas. E tudo a sete graus. Tive medo. Quem tem medo de hipotermia?

Nessa cidade, meus guias dormem.

De São Paulo a Salvador

Do alto,
cidades de luzes orgânicas,
nervos estendendo-se iluminados.
A cidade repousa do alto.

A luz se espraia.
Galhos,
raios horizontais.

Acima,
a mãe da noite
se fecha.
Prefere contemplar o que sente.

Veias acesas avançam como um rio
espalham-se
em todas as direções.

Por toda parte,
amontoados incandescentes.

Abaixo,
gente
descansa
em paz(ou não).

Uma noite entre São Félix e Cachoeira na Bahia com Nuno Gonçalves

Nuno Gonçalves, o poeta das redes. Nem ríspido, nem delicado. Um pouco de auto-mitificação, que nesse mundo ninguém é de ferro, e duas carteiras de cigarro por dia. Irrita-se quando perguntado sobre família “Tá bom, né, léo? Qualé? Que merda é essa?” mas sou eu mesmo que sou chato, diria Uirá, que os Santos Reis o guiem. Nuno Gonçalves, um bom poeta. Um poeta do gesto. Mais de gesto que de palavra.

Em casa de Nuno, cadeira é só pra visita. Sentamos no chão ou dormimos na rede. Do livro mais torrencial da MassaNova Literatura: Nuno, poeta de poucas palavras.

Um homem de narrativas, não de filosofia. Um poeta que diria que a filosofia é o planejamento do implanejável. O contrário, diria ele, é poesia.

Nuno prefere dormir no quintal, na varanda sob o vento. Plantas avançam sobre o quintal de Nuno. No fundo do quintal, um mirante para evaporar a Djamba tomado de ervas daninhas e capim santo. Pergunto sobre a história da casa onde ele mora. Me diz que não sabe, não quer saber, que estuda a história para esquecer a sua própria. Eu não entro em detalhes. Um bom amigo, embora cru. Nuno, o poeta que assina como "pajé da tribo". e suas feições não nos dizem algo diferente disso: Nuno, o poeta-índio cujo sonho é conhecer (reconhecer, talvez) a América Latina.

Além do telhado avistam-se os reflexos das luzes da cidade em frente, Cachoeira-BA, onde tudo começou. Ainda sabe pouco sobre a cidade. Eu menos ainda.

Durmo na sala, ouvindo os passos das unhas da cadela Helena e sua filhota, que perambulam dentro de casa enquanto Nuno dorme lá fora.

Uma ponte-férrea liga as margens do rio Paraguaçu. Do outro lado está Cachoeira, de rodoviária simples e vielas de fachadas coloridas. Cidade recuperada de paralelepípedos alisados. Em frente à rodoviária, a ferrovia com abóbada de sabor mourisco. O negro árabe, islamizado, esteve aqui. Abóbadas e janelas quase-islâmicas. As cidades pequenas são onde tudo começa. Lenta e cotidianamente.

Casebres coloridos ao pé do morro de São Félix. Casarões à margem do rio. Antigos e sujos casarões. À paróquia Deus Menino, o alto de dobras ensebadas. Dentro, missa de Corpus Christi, onde os fiéis cantam louvores antropofágicos sem saber. “O corpo que era Dele eu comerei agora. O sangue que era Dele, meu será. A vida que era Dele, eu viverei agora. O sonho que era Dele, meu será”. A antropofagia profana dentro do templo sagrado. Um ritual antropofágico.

O rio Paraguaçu separa Cachoeira e São Félix. “O vapor de Cachoeira não navega mais o mar” canta o ilustre Baiano. Foi ali que tudo começou. Os barcos do recôncavo desciam por ali e à margem direita nasceu Cachoeira. À esquerda, São Félix. Cidade que neblina de manhã cedo. Existem hoje duas árvores à beira do Rio Paraguaçu. Névoa, árvores, o rio, a ponte, do outro lado a cidade colorida de Cachoeira. E o movimento antigo do vapor se advinha pelos botecos que se avizinham à rodoviária. Um balaustrada protege o parapeito do rio. Nada ali tem menos de cem anos me diz Nuno Gonçalves.

Um trem lento e cargueiro cruza a ponte São Félix-Cachoeira rumo a Minas Gerais, é o que diz ele. Enquanto o jogo acontece em meio a torcedores do figueirense e do fluminense. Ninguém sabe do que o trem vai cheio. Cotidiano e invisível. Tanto quanto as cachoeiras lindíssimas que existem ali e que eu não vi.

Cidade de paralelepípedos. Aqui, resquícios do Brasil colonial em que o paralelepípedo era o melhor piso para as carroças e carruagens de seu dono e senhor.

Mucambos de sobra, minguados sobrais.

De Feira de Santana a Salvador

Tive de vender livros na rodoviária. Doente de febre desde a acolhida na casa de Nuno Gonçalves, sem grana pra voltar pra casa de Márcia Belchior, em Lauro de Freitas, por um erro de cálculo, e com fome, vendi um livro por dois reais, o preço do ônibus. Espero ao menos que o senhor que o comprou leia-o.

À salvo em Salvador, a última cidade

Eu desfrutei do sol perto da casa de Márcia Belchior e seu pequeno Miguel. Vilas do Atlântico é um condomínio tão imenso que virou bairro. Espontaneamente. Uma praia semi-deserta, reduto dos surfistas.

Em Salvador, vi o Pelourinho, cidade antiga e colorida. Dos albergues de madeira, imagens esculpidas nas igrejas mais antigas. Ladeiras e mais ladeiras de paralelepípedos até a Ladeira do Carmo, onde reina, íntegro, o Convento do Carmo já tornado hotel.

Em Salvador, vi a cidade baixa e o elevador Lacerda. O Forte de São Marcelo e suas paredes de prisão como a Ilha do Governador. Pequenas embarcações e o sol avermelhado, cremoso, se pondo nas ilhas do horizonte. Da antiga sacada do casarão 64, na Ladeira do Carmo, hoje um bar chiqueiroso onde se serve Miolo a trinta-e-três reais. Os donos estão pintados em quadros do corredor escuro: senhores, brancos e aureolados.

Do alto era lindo, indescritível. Ou não se pode fazê-lo ou ainda não posso tanto.

Da Fundação Casa de Jorge Amado, vi um negão subindo a ladeira colorida com as mãos, sem pernas, grotesco e belo como num filme de Cláudio Assis. Um milhão de produtos miudinhos e sortidos por não menos de cinqüenta reais.

Guias repentinos se achegam e lhe recebem com uma chuva de informações sobre os prédios, sobre as fontes, as praças, quitandeiras, monumentos e depois lhe pedem um trocado. Alguns ameaçam de assalto ou outras atrocidades se você negar.

No Pelourinho não há planos, tudo ou sobe ou desce. Simbolicamente. Márcia Belchior encontra nisso o leitmotiv da retaguarda avantajada das baianas.

As baianas! Ah! As baianas...

São normais como qualquer outra mulher. Não são nem mais negras. São mulatas, são cafuças, são mestiças. As negras são como o pelourinho, folclore.

As cidades não existem mais. O Pelourinho, a Cidade Baixa, a Praia de Iracema, a Baía de Guanabara são restos mortais. Museus a céu aberto. Tudo agora é um imenso não-lugar. Da estranheza de encontrar, no final de uma grande avenida, no centrão da cidade, movimentadíssima, comercializadíssima, urbanizadíssima, sujíssima, a Praia de Itapoá, um paradoxo toquinheiro.

Aprendi que as cidades estão mortas. E que as árvores existem para recomeçá-las.