quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Quinze dias foram suficientes para que meus pais se conhecessem numa loja do centro que existe ainda hoje, no mesmo lugar. Uma loja chamada "Esquisita". Não podia dar noutra coisa.
Meu avô-materno era funcionário do DENOCS e vivia de cidade-em-cidade a construir estradas. Meu avô-paterno era um agricultor-feirante que só saiu de Pentecoste para morrer em cima duma cama, de acidente vascular cerebral, num quarto atrás do depósito de mercadorias do comércio do meu pai. Forças co-existentes em mim e materializadas no medo ancestral de se afastar daqui, na ânsia antíqüíssima de partir...

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

a pólvora

(para Tatiana R. Passos)

Ganhei dois pesos de chumbo essa semana
e ainda não sei pra que lado fica a fonte.
Estou certo mesmo quando reconheço o erro
e isso dói como prender o dedo à porta.

Como compreender o que não se encerra, o que não cessa?
Como entender o que só se encerra em si mesmo,
em silêncio, não se abriga, não se abre, não se apega, não se aninha?

Nem você nem eu sabemos da melhor escolha.
Trabalha-se com o que se tem
e às vezes, muitas vezes, quase sempre, aliás,
se quer mais,
e mais e mais...

Não sabemos do melhor caminho,
aprendemos e o fazemos como possível.
E isso dói como rasgar o dedo em cacos de vitrais.

Ainda é cedo, amor, já cantava Cartola.
Enquanto escuto essa música,
lembro de ti, em minha idade,
de mim na sua idade:

Você tem toda a razão, sim, toda a razão...
e tudo vai convergir para confirmar o que você diz
e todos vão co-agir para reafirmar o que você pensa
não só porque pra você a vida começa agora
mas porque você tem a idade das certezas,
a idade das verdades,
a idade de ferro,
a idade das muralhas.
Há sempre sábios e loucos terceiros a concordar com o que quer que seja,
loucura ou epigrama,
a concordar com qualquer que seja a nossa escolha.

em verdade, ninguém sabe mesmo a idade que tem.

e não se esqueça: a verdade é sempre verde, sempre.
(Um conselho é sempre uma forma de cuidar)

Guias? Discípulos? Não se pode escolher ser um-ou-outro ou um-e-outro.
Não nos cabe o direito de escolher.
Já disse outra vez e não canso de repetir:

Dois deuses acima de nós
disputam o controle de nossos atos,
o destino e o acaso.

Aprende sempre quem ensina
e quem aprende sempre ensina a si mesmo.
Amar é um segredo.
Amar é o exercício constante de aprender os silêncios.

Mas do silêncio sozinho
só pode vir
o erro.
E ainda assim
ainda assim
não descobrimos a pólvora!


16 de outubro
22h45
"o homem que foi teu menino
envelheceu"

(F. Pessoa)

sofia

― Olhe para nós! Disse ele, nu, diante do espelho enquanto ela se lavava. Havia anos, eles repetiam o mesmo ritual. Depois do sexo, voltava-se a enxergar o corpo. No escuro do quarto, enquanto trepavam, o corpo era tão imenso, tão intenso, tão presente, real ―que ele não existia, não podia. Não se podia senti-lo.

― Olhar o quê? Intrigada, ela ergue rápido a nuca mas num instante volta a fazer o que estava fazendo. Ali, no bidê, absorta em lavar-se, não podia imaginar sobre o que ele falava.

― Olhe para nós! Seus olhos no espelho saltando das órbitas, redescobrindo o corpo tantas vezes visto. E se estabelecia ali um diálogo silencioso. Ele e o próprio corpo. Ele movimentava os braços, abria-os, erguia-os, apalpava, tocava, pegava. Sua barriga era tão grande que ele mal conseguia enxergar o seu pau, dali de cima; precisava sempre do espelho agora. E ela cada vez menos entendia. Passou por ele como se fosse algo comum e seguiu para a cozinha, acender um cigarro e fazer o café. Você quer café? Perguntou da cozinha. Ele inerte, repetindo sempre as três palavras.

Quando ela terminou de fumar o terceiro cigarro, olhando pela janela um casal de namorados trepando no quarto do prédio vizinho, ele chegou ainda nu por trás dela, ainda calado. Eles ainda estão lá, disse ela batendo as cinzas na xícara fria. Ele desviou o olhar e observou. Olhou para ela. Você ainda gosta de trepar comigo? Sem olhar para ele e soltando um baforada disse secamente que sim e não disse mais nada.

Ele bebeu água e ia voltar para o quarto quando ela severamente perguntou E você? E você, o quê? Perguntou ele. Você ainda gosta de trepar comigo? Ele lhe deu as costas, sem responder. Estava frio. Ele precisava se vestir. No frio, o corpo voltava a existir. E sentiu pena de si. Vestiu a camisa de botão com que passou o dia, pôs uma bermuda, calçou a pajero e saiu de casa.

Olhe para nós, Sofia! Foi o que ele disse antes de fechar a porta.