sábado, 27 de junho de 2009

eu insisto

Escrevi um artigo que, me disseram, não poderia ter sido escrito por mim.
Entendi que eu passarei a vida a escrever artigos que não poderiam ter sido escritos por mim.
Não só artigos.
Mais que isso.

Passarei a vida a escrever poemas que nunca poderiam ter sido escritos por mim.
Não só poemas.
Passarei a vida a dizer coisas que nunca poderiam ter sido ditas por mim.
Mais ainda.

Passarei a vida a fazer coisas que jamais poderiam ter sido feitas por mim.

Depois,
existirei como nunca poderia ter existido.

Ao impossível,
serei qualquer coisa que nunca poderia ser considerado eu mesmo.

Depois de depois do impossível,
viverei o que nunca poderia ter sido vivido por mim;
amarei o que nunca poderia ter sido amado por mim;
sentirei o que nunca poderia ter feito sentido pra mim.

eu...
...inexisto,
desexisto
e re-existo.
Eu insisto.

das duas uma

ou a literatura se volta para a vida
ou a vida abandona a literatura

terça-feira, 23 de junho de 2009

a beleza ainda vai me enlouquecer
vocês vão ver

domingo, 21 de junho de 2009

O Jardim das Horas



A canção passava. Procurando, a canção passava deixando um rastro de flores. Um pequeno filete, como um traço, um risco, um riacho, fronteira entre o que fora e o que será. O ar cheio de cheiros. Respire. Inspire-se. Sinta o cortejo das águas semeadas. Ouça o cortejo cantando no jardim das águas. Por onde a canção caminha está a felicidade. Aos nossos pés, flores terão nascido se tivermos a calma de observar, a leveza de não pisar.

A canção passava fecundando, semeando. E por onde tem passado, tem deixado um rastro onde a beleza não é de ver ou tocar. Nele consta apenas uma atmosfera fina, tão pura, tão ingênua que quase podemos pensar no caminho de volta. A canção é forte, radiante. A canção é um encantamento. Caminha e não há como não seguir. Tenho os pés levantados do solo enquanto a multidão alegre e colorida a tons claros sorri, me eleva e me carrega como amigos que nos carregam em festa. E por onde passa, armas se rendem a uma paisagem de fazer sorrir um menino do dedo verde, cujo dedo fazia florescer pedras.

O caminho movediço e tortuoso cedeu de vez, e não precisamos mais de andaimes. Descemos, alcançamos o chão ― o desafio é alcançar o chão, a superfície, primeira fronteira ― e continuamos a canção. Ali estão os guardas, sem utilidade porque aprendemos a confiar; armas pesadas que se transformam em velocípedes para crianças órfãs, como previu o poeta.

Nada nos pode atingir. A era do medo passou, passou hoje, enquanto a canção passava. Retirou dos soldados comandos na ponta das baionetas, bacamartes. Soldados que choraram no sonho e acordaram chorando. Atiravam como cães ferozes e medrosos. Chegamos perto, bem perto, nunca é perto demais. Acalmamo-los, abraçamo-los e cãezinhos agora mansinhos, outrora raivosos, perceberam que nosso cheiro é bom, que não cheiramos a medo. Todas as canções do mundo compõem essa imensa canção. Todos os aedos, cantores, poetas, violeiros, emboladores; todos os cancioneiros, musicistas, instrumentistas, coralistas; todos os sons, canções, tons, semitons, dissonantes ou não compõem essa canção interminável. Todas as canções podem soar, ressonar pra sempre, sempre, sempre, sempre... noutra canção. Nessa canção.

Tão puro o ar, a atmosfera que a canção vem arejando de si que amortece todas as quedas, acalma as mais terríveis querelas, acalenta as mais difíceis pelejas. O ódio não é o contrário do amor, mas ausência dele. E nada pode vencer a força do beijo, do abraço dessa canção.

O cortejo vai cantando, parece uma romaria que segue a orar. Não há canção verdadeira que não seja oração. Abrandam-se guerras, soldados se abraçam e se cumprimentam em língua estrangeira, e como tudo é festa, até as balas são de festim.

Hoje, enquanto o dia renascia, nos demos conta de que somos parte da canção, como dissonâncias de um mesmo acorde estranho. Foi quando enxergamos, enfim, o caminho florido que é o caminho de todos em União, o caminho verdadeiro, abraçados pela força da harmonia ouvida uma única vez, desde o Princípio, há milhares e milhares de anos.

Aqueles que ali valsam, que ali vão são os primeiros. Nós... não seremos os últimos.

http://www.myspace.com/ojardimdashoras