terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

a estrada

Pessoas indo, pessoas chegando. A gente ocupando espaços outrora ocupados pelos que nos protegiam, pelos que nos guiavam. E a gente tendo que aprender a guiar a si mesmo e a guiar outros. É uma época estranha. Muito estranha. Uma época em que se funda a poética do estranhamento. O estranhamento com que Cesário Verde olhava pras coisas. O horror com que Fernando Pessoa via as coisas. A modernidade, a máquina, a fábrica, as luzes incandescentes da boemia, o bafo morno dos bueiros pelas vias.

O primeiro sinal foi andar a pé pelas praças e ver a multidão de jovens não muito mais jovens que eu vestidos de preto, todos, bebendo vinho barato e achando o melhor vinho do mundo, bebendo cachaça, bebendo cerveja e chegando tarde em casa, e imaginar que esses ainda há pouco, quando eu ocupava aqueles espaços, dormiam cedo assistindo desenho animado e tomando leite no café-da-manhã, enquanto eu vadiava pela noite com dois reais no bolso, saltando das traseiras do ônibus pra não ter que pagar passagem, conhecendo o dono da boate e entrando sem pagar até a falência do lugar, encontrando amigos desencontrados, experimentando entorpecentes e entorpassados na minha curta juventude transviada. Ah! As distorções das bandas de rock em que eu gritava ao microfone! E me ver ali, ocupando o espaço antes ocupado pelo senhor que passava e me olhava encantado de saudade, ou enojado pelo asco cético de que eu tivesse algum futuro, cético de que aquela minha vida pudesse me levar a algum lugar do mundo.

O segundo sinal foi encontrar pessoas tão tributáveis quanto eu. Tão casadas quanto eu. Tão com filhos quanto eu. Outras pessoas que também já tinham feito sua escolha. Outras pessoas que não eram a minha escolha, mas que poderiam ser. Outras pessoas de quem eu não era escolha, mas poderia ser. Outras pessoas também interessantes, outras tantas boas amantes, outras mentes também tão sonhadoras quanto a minha. E cada um andando em sua via-reta-meta. Cada um tão bem composto em sua via, seguindo infinitamente a estrada cega. E sentir que tudo é tão fluido e tão fugidio e tão veloz e tão rápido e tão imenso, tão vário. E a gente inda menino diante da vitrine da padaria cheia de doces.... e tendo que escolher só um sonho, um mísero sonho nessa esteira rápida e volátil. De um mundo de superheróis a um mundo de supermercados. E a morosidade de seguir em frente olhando outros caminhos que se vão esvaziados e nós nos distanciando cada vez mais das esquinas originais.

O terceiro sinal, dos que vieram antes de nós seguindo na estrada e dobrando esquinas para nós inda invisíveis, para uma estrada além da que vivemos. O risco iminente de ir-se embora, de restar em nós tão pouca gente. Poucos dias antes e nós nos braços da infância nua e inocente. Ali, na extensa via e humilhados a ver o nosso guia assim cambiante. E nós, já deste lado da coroa, cumprindo o estranho rito de existir, nos vemos sempre e novamente obrigados a dar seguimento também àquilo que não escolhemos, àquilo que está por vir. Quando vislumbramos a ida do outro que nos precedia, vemo-nos qual alma danada, perambulando em nossa via perdida.

O quarto sinal são meus amigos saindo para o mestrado. E eu a publicar livros, na esperança vã de fundar academias com contratos temporários. Uma amiga que vai pro doutorado em Campinas. Um amigo que vai pra Pernambuco virar antropólogo. Uma colega que fica, um amigo que vai. Outro que já volta ― inda morna na memória a euforia de quando ele ia, ainda. Saber que se pode e não poder. Saber que é possível e não ser. Ser escritor e ser traído pelas palavras que escolhi para dizer. Notas boas. Notas boas em todo o processo. Tanto esforço e tanto aprendizado imaterial, eterno, quando o que se quer é a matéria, é o certo. Tanto saber e tanta nota boa para sucumbir num reles projeto. Esbarrei num ante-projeto. E é isso o que foi tudo. Não passou de um reles projeto. E tanto que queria ficar. Tanto que podia ficar. E tanto e tanto e tão e muito e contudo... eu fico aqui, tendo escolhido partir.