quarta-feira, 22 de outubro de 2008

quando o futuro atropela o que hoje somos,
estamos onde não estamos,
é preciso olhar as unhas dos pés.

Trago a civilização na cara:
são os óculos
que me permitem ver de longe
mas me impedem de sentir meu rosto.

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Estando na Santa Casa de Sobral, hospital público daqui, de madrugada, na emergência, fiquei a matutar uma questão filosófica:

As enfermeiras são sádicas porque são enfermeiras ou elas são enfermeiras porque são sádicas?

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Estou nu.
E assim eu poderia simplesmente inexistir
como o fizeram Neto transformado em zero,
Bandeira, que não deixara sequer nomes.
Outros...

Estou nu.
Nem como vim ao mundo
mais nu ainda.
Não a nudez da verdade de um morto insepulto.
Nu, ainda mais...

Nenhuma roupa-de-baixo pra aparecer por cima.
Nenhum pêlo crescido que possa esconder a minha cara cínica.
Crua e Nua como a natureza sem cascos,
sem crosta, sem grossa camada, sem escamas.

Sou tudo aquilo que vejo e só vejo parte daquilo que sou
― em trocadilhos baratos, ainda que esteja nu.
Frente ao espelho, nu.

Nem dentro,
nem dentro estou vestido.
Nem minha alma está vestida.
Minto! A minha alma se veste daqueles vidros de aeroporto
em que se podem ver os ossos do corpo
nu,
sem roupa, sem óculos, sem meias
nu de nervos, nu de amores
nu de tremores, nu de estertores, nu de rumores...

A única prova de minha existência ferrenha
é a dor que eu provoco, a dor que eu sinto,
(Dôo, portanto existo)
A dor que eu minto.
Minha nudez, atentado violento.

Nu,
a dor sem esparadrapos, sem mercúrio-cromo, sem álcool, sem éter,
a dor etérea da lâmina aguda das horas, dos segundos, das rochas...
...nuas, completamente nuas.

De uma nudez sem braços, sem traços, disforme.
Não este não sou eu no espelho!
É outro! Só pode!

Sem pele, sem raça, sem chão, sem religião
sem história nem estórias pra contar
como um griot funéreo das semanas insepultas da África...

Sem pai, sem mãe, sem irmãos
(e todos vivos ali, logo ali, na sala)
Quase sem pão
― que o trabalho me alimenta e me veste
de rendas e bordados de vaidade e de vontades,
a vontade absurda de estar nu.

Nu,
como aquilo que pulsa ao querer começar,
como aquilo que vê mas não sabe enxergar
a folha branca, página que descansa.
Nudez muda que se entrega.
Mudez surda, cega.

Nu,
deserto entre as estrelas relfetidas na lama.
Nu,
veredas, onde só o vento, só o vento...

Nu até de palavras pra dizer que estou nu.
Da mais completa nudez em que se possa estar nu,
textura daquilo que dorme
textura daquilo que morre
despido de sonhos,
despido de pernas, despido de planos
como quem nasce

Ah! A simplicidade das nuvens dos desenhos infantis!

Aqui,
a terra sonambúlica do nada.
Hoje,
Era metamórfica de kafkas
(e sorrisos
postiços
aos domingos)

Musa trôpega.
Escuridão anímica dos rios, estradas d’outrora.

Caímos no abismo! Só pode!
Tinham razão os antigos:
a terra era realmente quadrada.
Traíram-me todos os livros
Tornaram-se putas todas as fadas.

léo m.
agosto de 2 mil e 8

quarta-feira, 2 de julho de 2008

Tendo abraçado o inevitável, perdi o medo. Vou lhes contar um segredo sobre o medo: ele é um absolutista. Com o medo, é tudo ou nada. Ou bem, como um tirano arrogante, ele manda na nossa vida com uma onipotência estúpida, que nos torna cegos, ou bem a gente o derruba, e seu poder se esvanece em fumaça. Mais um segredo: a revolução contra o medo, a trama que leva à derrubada daquele déspota ridículo, não tem muito a ver com a tal da "coragem". O que a impele é uma coisa mauito mais direta: a necessidade pura e simples de tocar a vida para a frente. Parei de ter medo porque, se minha passagem pela terra seria breve, eu não tinha tempo de ter medo.

(Salma Rushdie. O último suspiro do mouro, p. 174)

domingo, 22 de junho de 2008

Tenho canções lindas dentro de mim.
Eu sei porque sonho com elas quase todas as noites.
Embalando meu sono, trilhando meus sonhos, acalmando minha alma...
Posso voar como uma bolha de sabão,
porque toda nota, cada nota, é dentro de uma bolha de sabão.
E o medo é uma agulha de furar bolhas.

Podemos voar, viver voando, flutuando como as estrelas.
O que pesa, o que nos atrapalha
é o medo.

domingo, 15 de junho de 2008

íntegra da entrevista publicada pel'O Povo, hoje, domingo

1. Como a internet interfere no seu processo de produção e qual a importância desse meio para a literatura?

Existe um ensaio do Carlos Emílio chamado “A vitória da imaginação literária na internet", publicado em 2005, na cronópios (www.cronopios.com.br). Ele faz parte dessa discussão gigante anterior à própria internet, inclusive. Olhe, observe as revistas (que se dizem) de arte, a Bravo, por exemplo, é um panfleto, o panfleto mais caro da indústria cultural do eixo Rio-Sul. Onde está a literatura ali? Observe os principais jornais do país, a Folha, o Jornal do Brasil, O Globo, observe o próprio O Povo; onde está a literatura aqui? Como dizia o poeta alagoano Jorge de Lima, “a imensa metrópole baniu a poesia”! Desde os parnasianos, a literatura foi domesticada, podada, castrada; ela foi disciplinada. Até nas escolas, onde existe uma disciplina chamada “Literatura”, o que se estuda ali está muito mais para História da Literatura, que para Literatura mesmo. A vida utilitarista que a gente escolheu pra continuar vivendo excluiu a arte e a literatura de seu cotodiano. A palavra perdeu a sua força, seu poder original de fundar consciências, de re-fundar a história. A própria literatura foi chamada de ficção, ora vejam só! Veja só, a internet é o lugar da liberdade total, aqui se pode tudo, aqui, nessa sala escura em que se materializam as vozes e criamos personagens de nós mesmos, até um bate-papo se torna dramaturgia. É o lugar da hiperliteratura, da supraliteratura. Há um conto meu publicado na corsário (www.corsario.art.br) chamado “Coito Interrompido". É um retrato do fetiche, da permissividade e da perversão do sexo virtual e das personagens que interpretamos ali, com citações da literatura erótica e da poesia marginal. Veja, aqui, só nesses dois, três minutos, mencionei três textos publicados pela internet. Os sites que se dedicam à divulgação da literatura estão abarrotados de textos. É uma revolução. Olhe o artigo do Carlos, é a vitória da imaginação literária na internet mesmo. Os blogs cada vez mais divulgados, e seu uso cada vez mais difundido. É uma Era polifônica, em que todos os sons, todas as idéias, todas as aberrações e maravilhas da psique humana encontram escoadouro na internet, esse espaço da democracia real. O único lugar em que a democracia deu certo é na internet, mas também dentro dela, para quem está dentro dela, porque além dela, há também o que a gente chama de exclusão digital, né?

2. Bolsas de criação literária/prêmios/editais — Comente a política de editais, as bolsas de criação literária ofertadas pelo Estado e os prêmios de literatura. Qual a importância e os riscos embutidos nesses mecanismos?

Há cerca de um ano, mais ou menos, publiquei na cronópios um ensaio intitulado “O Programa Petrobrás Cultural 2007 e a História da Literatura" em que reflito, ao longo de dez páginas, a respeito da relação sutil que há entre estes editais de fomento e a constituição da própria história da literatura; uma discussão que passa diretamente pela veia do cânone. Somos seres gergários, já diria Uirá dos Reis, poeta e contista daqui também, e, justo por isso, tendemos a nos organizar em grupos. Nesse tal Programa, dos 423 projetos ali inscritos, os 23 contemplados foram do eixo Rio-Sul, ou seja, São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e do estado que crê, agora, compor a região sudeste, a Bahia. A questão fica estranha quando vemos que a comissão de seleção foi composta por cinco membros dos respectivos estados. Em 2005, a PubliFolha publicou a antologia Literatura Brasileira Hoje de Manuel da Costa Pinto, onde aparecem 60 escritores, sendo 43 do eixo Rio-Sul. Qualquer semelhança com o resultado do edital do Programa 2007 não é mera coincidência. Por uma limitação humana mesmo, não por má fé. Risos. Seria ingenuidade imaginar que o mesmo não ocorra aqui. É só olhar os grupos e pessoas premiadas nos últimos cinco anos pelos editais de fomento― não só a literatura ― no estado. Está lá, visite o site. Até hoje há uma polêmica danada que gira em torno da Caos Portátil. Seja como for, para fazer um levantamento estatístico do que acho, façamos o seguinte cálculo: quantos habitantes tem o estado? Quantos blogs de cearenses existem? Quantos trabalhos inscritos nos editais? Quantos são financiados? Com os recursos que temos, é preciso haver um processo seletivo cinicamente rigoroso mesmo. E, mais, pode haver critério objetivo quando se trata de arte? Tenho um texto no meu blog cujo título é justamente esse, “Por que prefiro os meus amigos". Risos.

3. Crítica literária — Como você enxerga a crítica literária feita no Ceará?

Ixe! Existe? Risos. Olha, sempre tive um olhar de trevés para a crítica. Lembro que na época da graduação, soube de uma frase do Jean Sibelius em que ele diz assim “Não se preocupe com os críticos, jamais, em tempo algum, se ergueu uma estátua sequer a um crítico". Risos escandalosos. Prefiro a análise, a reflexão de que a literatura pode ser fonte. A literatura não quer ser discutida, ela quer discutir. Até hoje, um amigo, contista de Crateús, o Luciano Bonfim, espera que eu escreva uma resenha, um comentário sobre o último livro dele; o próprio Carlos quer ainda que eu resenhe seu último livro de contos, O romance que explodiu (ó o nome do livro! É um fanfarrão mermu um home desse! Risos). Mas eu não sei fazer isso. O que faço e tento instigar meus alunos a fazerem é pensar sobre o mundo, sobre si, sobre o homem, a partir da amostra do real que é a literatura. Roland Barthes dizia que a literatura, não importa a escola literária a que ela se vincule ...realismo, surrealismo, realismo mágico, fantástico... ela é o real, o próprio fulgor do real, da subjetividade do real. Discuti sobre isso num texto chamado “O poeta como guia da humanidade", também publicado pela cronópios.

4. Formação do escritor — O que você pensa a respeito dos cursos de graduação cuja missão é formar escritores? É possível aprender a ser escritor?

Mardonio França, da corsário, publicou um pequeno ensaio meu chamado “O que é escrever?" e acho que essa pergunta que você me fez passa necessariamente por essa outra. Bachelard dizia que o bom poeta é aquele que nos faz querer ser poetas, que é aquele de quem lemos algo ao mesmo tempo em que dizemos ‘Putz! Eu poderia ter escrito isso!’, ou mais ainda, ‘PQP! Eu DEVERIA ter escrito isso!’ Risos. Se é possível aprender a ser escritor? Acho que sim. Mas a querer ser escritor, é como diz uma amiga também contista, a Érika Zaituni, “há coisas em que não é possível tocar, elas é que, se quiserem, nos tocam". Sim, é possível sim. Agora, daí a ser um bom escritor, já não sei. São caminhos, né? E quem pode dizer se funciona ou não antes mesmo de tentar? Existe uma paixão, um frisson, um amor, um sabor em escrever. O poeta, o escritor, ele escreve como respira. Ele é aquilo que ele escreve. Aquilo que ele escreve não foi escrito por ele. É a sua tradução. A sua antropomorfização. A sua verbalização. É ele noutro plano, o plano de um ser mais sutil, um ser de linguagem. E aqui aproveito para citar um trecho desse meu texto... “Essa paixão não pode ser ensinada. Não há como ensinar o amor à palavra. Essa paixão, esse amor se constroem espontaneamente, por anos e às vezes por décadas, por toda uma vida! É resultado de uma relação íntima entre o ser e a sua dimensão enquanto palavra. É o fruto do ventre imaculado da solidão, porque escrever é o ato de maior solidão que pode existir. Na palavra, o texto é você e você está sozinho, como uma casa abandonada habitada por espíritos e fantasmas".

5. Quais são os seus autores de cabeceira?

São poetas. São filósofos. Não leio muitos contos. Leio alguns, conheço alguns, gosto de alguns, mas minha literatura é toda de aforismos, porque entendo que o aforismo é o insight, é o que a artista plástica Érika Zíngano chama de sacação, é um mergulho no instante-já da Clarice Lispector. Pausa. Sim, né? Mas quais são? Jorge de Lima, Mario Quintana, Ayla Andrade, Manoel de Barros, Oscar de Oliveira Magalhães ― um senhor de Ubajara, drummondiano antes mesmo de Drummond― Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Alan Mendonça, Carlos Emílio, Filgueiras Lima, Fernando Sabino, Marcelo Bittencourt, Fernanda Meireles, eita... e, dos filósofos, o maior de todos que é Gaston Bachelard. Putz!

sexta-feira, 13 de junho de 2008

meu limite
é minha vontade

quinta-feira, 12 de junho de 2008

A vaidade é um medo,
o medo de ser esquecido.
A vaidade
é quando a gente esquece
que tem gente que lembra da gente;
mesmo quando a gente esquece deles.

quarta-feira, 11 de junho de 2008

um filho é um mistério

quarta-feira, 4 de junho de 2008

E quando apagarem-se, enfim
todas as luzes
voltaremos,
pouco a pouco,
a contemplar os astros.

Só lá,
na escuridão mais profunda,
é que se pode ver
a verdadeira luz das estrelas,
as estrelas mais distantes.

quarta-feira, 16 de abril de 2008

em qualquer parede
você pode abrir uma porta
toda palavra é uma porta

quarta-feira, 9 de abril de 2008

...a rara delicadeza de estar sorrindo...

terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

a estrada

Pessoas indo, pessoas chegando. A gente ocupando espaços outrora ocupados pelos que nos protegiam, pelos que nos guiavam. E a gente tendo que aprender a guiar a si mesmo e a guiar outros. É uma época estranha. Muito estranha. Uma época em que se funda a poética do estranhamento. O estranhamento com que Cesário Verde olhava pras coisas. O horror com que Fernando Pessoa via as coisas. A modernidade, a máquina, a fábrica, as luzes incandescentes da boemia, o bafo morno dos bueiros pelas vias.

O primeiro sinal foi andar a pé pelas praças e ver a multidão de jovens não muito mais jovens que eu vestidos de preto, todos, bebendo vinho barato e achando o melhor vinho do mundo, bebendo cachaça, bebendo cerveja e chegando tarde em casa, e imaginar que esses ainda há pouco, quando eu ocupava aqueles espaços, dormiam cedo assistindo desenho animado e tomando leite no café-da-manhã, enquanto eu vadiava pela noite com dois reais no bolso, saltando das traseiras do ônibus pra não ter que pagar passagem, conhecendo o dono da boate e entrando sem pagar até a falência do lugar, encontrando amigos desencontrados, experimentando entorpecentes e entorpassados na minha curta juventude transviada. Ah! As distorções das bandas de rock em que eu gritava ao microfone! E me ver ali, ocupando o espaço antes ocupado pelo senhor que passava e me olhava encantado de saudade, ou enojado pelo asco cético de que eu tivesse algum futuro, cético de que aquela minha vida pudesse me levar a algum lugar do mundo.

O segundo sinal foi encontrar pessoas tão tributáveis quanto eu. Tão casadas quanto eu. Tão com filhos quanto eu. Outras pessoas que também já tinham feito sua escolha. Outras pessoas que não eram a minha escolha, mas que poderiam ser. Outras pessoas de quem eu não era escolha, mas poderia ser. Outras pessoas também interessantes, outras tantas boas amantes, outras mentes também tão sonhadoras quanto a minha. E cada um andando em sua via-reta-meta. Cada um tão bem composto em sua via, seguindo infinitamente a estrada cega. E sentir que tudo é tão fluido e tão fugidio e tão veloz e tão rápido e tão imenso, tão vário. E a gente inda menino diante da vitrine da padaria cheia de doces.... e tendo que escolher só um sonho, um mísero sonho nessa esteira rápida e volátil. De um mundo de superheróis a um mundo de supermercados. E a morosidade de seguir em frente olhando outros caminhos que se vão esvaziados e nós nos distanciando cada vez mais das esquinas originais.

O terceiro sinal, dos que vieram antes de nós seguindo na estrada e dobrando esquinas para nós inda invisíveis, para uma estrada além da que vivemos. O risco iminente de ir-se embora, de restar em nós tão pouca gente. Poucos dias antes e nós nos braços da infância nua e inocente. Ali, na extensa via e humilhados a ver o nosso guia assim cambiante. E nós, já deste lado da coroa, cumprindo o estranho rito de existir, nos vemos sempre e novamente obrigados a dar seguimento também àquilo que não escolhemos, àquilo que está por vir. Quando vislumbramos a ida do outro que nos precedia, vemo-nos qual alma danada, perambulando em nossa via perdida.

O quarto sinal são meus amigos saindo para o mestrado. E eu a publicar livros, na esperança vã de fundar academias com contratos temporários. Uma amiga que vai pro doutorado em Campinas. Um amigo que vai pra Pernambuco virar antropólogo. Uma colega que fica, um amigo que vai. Outro que já volta ― inda morna na memória a euforia de quando ele ia, ainda. Saber que se pode e não poder. Saber que é possível e não ser. Ser escritor e ser traído pelas palavras que escolhi para dizer. Notas boas. Notas boas em todo o processo. Tanto esforço e tanto aprendizado imaterial, eterno, quando o que se quer é a matéria, é o certo. Tanto saber e tanta nota boa para sucumbir num reles projeto. Esbarrei num ante-projeto. E é isso o que foi tudo. Não passou de um reles projeto. E tanto que queria ficar. Tanto que podia ficar. E tanto e tanto e tão e muito e contudo... eu fico aqui, tendo escolhido partir.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Quinze dias foram suficientes para que meus pais se conhecessem numa loja do centro que existe ainda hoje, no mesmo lugar. Uma loja chamada "Esquisita". Não podia dar noutra coisa.
Meu avô-materno era funcionário do DENOCS e vivia de cidade-em-cidade a construir estradas. Meu avô-paterno era um agricultor-feirante que só saiu de Pentecoste para morrer em cima duma cama, de acidente vascular cerebral, num quarto atrás do depósito de mercadorias do comércio do meu pai. Forças co-existentes em mim e materializadas no medo ancestral de se afastar daqui, na ânsia antíqüíssima de partir...

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

a pólvora

(para Tatiana R. Passos)

Ganhei dois pesos de chumbo essa semana
e ainda não sei pra que lado fica a fonte.
Estou certo mesmo quando reconheço o erro
e isso dói como prender o dedo à porta.

Como compreender o que não se encerra, o que não cessa?
Como entender o que só se encerra em si mesmo,
em silêncio, não se abriga, não se abre, não se apega, não se aninha?

Nem você nem eu sabemos da melhor escolha.
Trabalha-se com o que se tem
e às vezes, muitas vezes, quase sempre, aliás,
se quer mais,
e mais e mais...

Não sabemos do melhor caminho,
aprendemos e o fazemos como possível.
E isso dói como rasgar o dedo em cacos de vitrais.

Ainda é cedo, amor, já cantava Cartola.
Enquanto escuto essa música,
lembro de ti, em minha idade,
de mim na sua idade:

Você tem toda a razão, sim, toda a razão...
e tudo vai convergir para confirmar o que você diz
e todos vão co-agir para reafirmar o que você pensa
não só porque pra você a vida começa agora
mas porque você tem a idade das certezas,
a idade das verdades,
a idade de ferro,
a idade das muralhas.
Há sempre sábios e loucos terceiros a concordar com o que quer que seja,
loucura ou epigrama,
a concordar com qualquer que seja a nossa escolha.

em verdade, ninguém sabe mesmo a idade que tem.

e não se esqueça: a verdade é sempre verde, sempre.
(Um conselho é sempre uma forma de cuidar)

Guias? Discípulos? Não se pode escolher ser um-ou-outro ou um-e-outro.
Não nos cabe o direito de escolher.
Já disse outra vez e não canso de repetir:

Dois deuses acima de nós
disputam o controle de nossos atos,
o destino e o acaso.

Aprende sempre quem ensina
e quem aprende sempre ensina a si mesmo.
Amar é um segredo.
Amar é o exercício constante de aprender os silêncios.

Mas do silêncio sozinho
só pode vir
o erro.
E ainda assim
ainda assim
não descobrimos a pólvora!


16 de outubro
22h45
"o homem que foi teu menino
envelheceu"

(F. Pessoa)

sofia

― Olhe para nós! Disse ele, nu, diante do espelho enquanto ela se lavava. Havia anos, eles repetiam o mesmo ritual. Depois do sexo, voltava-se a enxergar o corpo. No escuro do quarto, enquanto trepavam, o corpo era tão imenso, tão intenso, tão presente, real ―que ele não existia, não podia. Não se podia senti-lo.

― Olhar o quê? Intrigada, ela ergue rápido a nuca mas num instante volta a fazer o que estava fazendo. Ali, no bidê, absorta em lavar-se, não podia imaginar sobre o que ele falava.

― Olhe para nós! Seus olhos no espelho saltando das órbitas, redescobrindo o corpo tantas vezes visto. E se estabelecia ali um diálogo silencioso. Ele e o próprio corpo. Ele movimentava os braços, abria-os, erguia-os, apalpava, tocava, pegava. Sua barriga era tão grande que ele mal conseguia enxergar o seu pau, dali de cima; precisava sempre do espelho agora. E ela cada vez menos entendia. Passou por ele como se fosse algo comum e seguiu para a cozinha, acender um cigarro e fazer o café. Você quer café? Perguntou da cozinha. Ele inerte, repetindo sempre as três palavras.

Quando ela terminou de fumar o terceiro cigarro, olhando pela janela um casal de namorados trepando no quarto do prédio vizinho, ele chegou ainda nu por trás dela, ainda calado. Eles ainda estão lá, disse ela batendo as cinzas na xícara fria. Ele desviou o olhar e observou. Olhou para ela. Você ainda gosta de trepar comigo? Sem olhar para ele e soltando um baforada disse secamente que sim e não disse mais nada.

Ele bebeu água e ia voltar para o quarto quando ela severamente perguntou E você? E você, o quê? Perguntou ele. Você ainda gosta de trepar comigo? Ele lhe deu as costas, sem responder. Estava frio. Ele precisava se vestir. No frio, o corpo voltava a existir. E sentiu pena de si. Vestiu a camisa de botão com que passou o dia, pôs uma bermuda, calçou a pajero e saiu de casa.

Olhe para nós, Sofia! Foi o que ele disse antes de fechar a porta.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

o silêncio também é uma forma de exclusão

saturno

ainda danço
mas nenhuma canção pode soar pra sempre
já não carrego anéis nos dedos
já tão cedo
deve ter sido estranho, terrível, amedrontador, para o primeiro homem que amou, quando o amor acabou, acordar e dar de cara, nos espelhos d'água, com um rosto velho, cheio de rugas e de barba branca

segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

Ela acorda. Teve uma noite repleta de sonhos ruins e a cabeça parece mais pesada do que no final do dia anterior. Lembra que toda vez que dorme ali naquela casa tem sonhos mais reais que a realidade; e sente uma pontada na fronte. Segura os cabelos mas segue até a geladeira.

Na animação que só os idiotas sentem ao acordar, o outro pergunta:
-Acordou?
-Não. responde ríspida. Eu sou sonâmbula.

sábado, 5 de janeiro de 2008

Por que prefiro os meus amigos

Sempre fui um admirador dos quadros de Robézio Marques e da música de Herveson Santos, o Baxim. Gosto, acho belo Gustav Klint, Volpi... embora nunca tenha visto um original sequer. Gosto do que pode fazer um John Lennon, um Villa Lobos. Mas sempre tive um apreço maior pelos mais próximos. Um amigo, formado em sociologia, com espírito de antropólogo e mestrando em história, o Delano Pessoa ―irmão de outro grande amigo e colega de faculdade, músico, batera de primeira linha e estudioso de italiano, Davi Pessoa― passou a se dedicar à leitura das imagens de Raimundo Cela. Belo sim, nosso. Os quadros dele sempre me lembram os livros do Aluísio Azevedo, um mestre para mim. Mas meu apreço pelos mais próximos sempre me fez preferi-los aos mais famosos.

Talvez pelo meu paladar mais adaptado aos de fora dos grandes círculos da Ignês Fiusa; ainda que alguns destes lutem desesperadamente para entrar nos círculos seletos e seletivos dos glorificados, como é o caso de Carlos Emílio. O nosso marginal, ou melhor, o marginal e nosso.

Talvez pelo meu apreço pelo que é nosso, como diria Zerivan, amigo e pesquisador de Cordel, “um sentimento bairrista”, talvez. Ou mesmo, e tenho principal apreço por essa versão, minha preferência a cultuar os vivos, e dentre esses, os conhecidos.

Talvez por entendê-los. Talvez por um desejo recalcado de que eles fizessem o mesmo e me pusessem na sua estante de preferidos e prediletos, esperança vã ou pretensão vaidosa.

Mas eu gosto de ter, na minha coleção de cds, os da minha geração. Alcalina, 1295, 2Fuzz, Macula, Jácio Cidade, Teófilo, do Piauí, Juliano Goulart, de Brasília, Carol Peryer, da Bahia, Enquanto a cidade dorme, coletânea das parcerias de Alan Mendonça com músicos como Sávio Leão, Calé Alencar etc, Lamentos do Mucuripe de um outro poeta-DJ Emocore, Pingo de Fortaleza, Giramundo, que ajudei a produzir, O circo vai pegar fogo, que ajudei a compor, O Quarto das Cinzas, com quem guardo muitas afinidades, Argonautas...

Gosto de ter, na minha estante de livros, um Luciano Bonfim, um Pedro Salgueiro, um Dimas Carvalho, um Nuno Gonçalves, um Alan Mendonça, um José Leite Neto, um Ivaldo Ribeiro, Carmélia Aragão, Carlos Emílio, Tavinho Paes e Mônica Montone, do Rio, Luiz Reis, de Brasília, Trazíbulo e João de Moraes Filho, da Bahia...

Ler sobre Aurora Zogoiby, a artista plástica indiana do romance de Salman Rushdie, me fez querer ter em casa quadros de amigos como o de Ed Ferreira que penduro na sala junto a ampliações das fotografias coloridas manualmente pelo tchecoslovaco Jan Saudek. Quero sim um Weaver Lima na sala, peças de Waléria Américo no corredor das estantes e os imensos papéis-de-pão a óleo de Robézio Marques no quarto de estudos.

Fanzines de Ayla Andrade, Uirá dos Reis, Marcelo Bittencourt e da fanzineira-mor, a que nos inspirou a fazer fanzines, a toda a nossa geração, a escritora delicadíssima e cheia de imagens singelas dignas de um Monet literário Fernanda Meireles. Vídeos-poemas de Mardônio França, Sabina Colares, Henrique Dídimo e até (pasmem) de Eduardo Jorge na estante da sala de visitas.

Simone, minha mulher antropóloga, reclama que a casa toda fica parecendo um consultório. Cheio de revistas, livros e quadros. Para isso tenho uma resposta quase-imediata, essa talvez a versão mais sincera: é a maneira de ter meus amigos todos bem perto de mim.

léo m.
natal de 2007