domingo, 21 de junho de 2009

O Jardim das Horas



A canção passava. Procurando, a canção passava deixando um rastro de flores. Um pequeno filete, como um traço, um risco, um riacho, fronteira entre o que fora e o que será. O ar cheio de cheiros. Respire. Inspire-se. Sinta o cortejo das águas semeadas. Ouça o cortejo cantando no jardim das águas. Por onde a canção caminha está a felicidade. Aos nossos pés, flores terão nascido se tivermos a calma de observar, a leveza de não pisar.

A canção passava fecundando, semeando. E por onde tem passado, tem deixado um rastro onde a beleza não é de ver ou tocar. Nele consta apenas uma atmosfera fina, tão pura, tão ingênua que quase podemos pensar no caminho de volta. A canção é forte, radiante. A canção é um encantamento. Caminha e não há como não seguir. Tenho os pés levantados do solo enquanto a multidão alegre e colorida a tons claros sorri, me eleva e me carrega como amigos que nos carregam em festa. E por onde passa, armas se rendem a uma paisagem de fazer sorrir um menino do dedo verde, cujo dedo fazia florescer pedras.

O caminho movediço e tortuoso cedeu de vez, e não precisamos mais de andaimes. Descemos, alcançamos o chão ― o desafio é alcançar o chão, a superfície, primeira fronteira ― e continuamos a canção. Ali estão os guardas, sem utilidade porque aprendemos a confiar; armas pesadas que se transformam em velocípedes para crianças órfãs, como previu o poeta.

Nada nos pode atingir. A era do medo passou, passou hoje, enquanto a canção passava. Retirou dos soldados comandos na ponta das baionetas, bacamartes. Soldados que choraram no sonho e acordaram chorando. Atiravam como cães ferozes e medrosos. Chegamos perto, bem perto, nunca é perto demais. Acalmamo-los, abraçamo-los e cãezinhos agora mansinhos, outrora raivosos, perceberam que nosso cheiro é bom, que não cheiramos a medo. Todas as canções do mundo compõem essa imensa canção. Todos os aedos, cantores, poetas, violeiros, emboladores; todos os cancioneiros, musicistas, instrumentistas, coralistas; todos os sons, canções, tons, semitons, dissonantes ou não compõem essa canção interminável. Todas as canções podem soar, ressonar pra sempre, sempre, sempre, sempre... noutra canção. Nessa canção.

Tão puro o ar, a atmosfera que a canção vem arejando de si que amortece todas as quedas, acalma as mais terríveis querelas, acalenta as mais difíceis pelejas. O ódio não é o contrário do amor, mas ausência dele. E nada pode vencer a força do beijo, do abraço dessa canção.

O cortejo vai cantando, parece uma romaria que segue a orar. Não há canção verdadeira que não seja oração. Abrandam-se guerras, soldados se abraçam e se cumprimentam em língua estrangeira, e como tudo é festa, até as balas são de festim.

Hoje, enquanto o dia renascia, nos demos conta de que somos parte da canção, como dissonâncias de um mesmo acorde estranho. Foi quando enxergamos, enfim, o caminho florido que é o caminho de todos em União, o caminho verdadeiro, abraçados pela força da harmonia ouvida uma única vez, desde o Princípio, há milhares e milhares de anos.

Aqueles que ali valsam, que ali vão são os primeiros. Nós... não seremos os últimos.

http://www.myspace.com/ojardimdashoras

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