segunda-feira, 11 de junho de 2007

Uma noite entre São Félix e Cachoeira na Bahia com Nuno Gonçalves

Nuno Gonçalves, o poeta das redes. Nem ríspido, nem delicado. Um pouco de auto-mitificação, que nesse mundo ninguém é de ferro, e duas carteiras de cigarro por dia. Irrita-se quando perguntado sobre família “Tá bom, né, léo? Qualé? Que merda é essa?” mas sou eu mesmo que sou chato, diria Uirá, que os Santos Reis o guiem. Nuno Gonçalves, um bom poeta. Um poeta do gesto. Mais de gesto que de palavra.

Em casa de Nuno, cadeira é só pra visita. Sentamos no chão ou dormimos na rede. Do livro mais torrencial da MassaNova Literatura: Nuno, poeta de poucas palavras.

Um homem de narrativas, não de filosofia. Um poeta que diria que a filosofia é o planejamento do implanejável. O contrário, diria ele, é poesia.

Nuno prefere dormir no quintal, na varanda sob o vento. Plantas avançam sobre o quintal de Nuno. No fundo do quintal, um mirante para evaporar a Djamba tomado de ervas daninhas e capim santo. Pergunto sobre a história da casa onde ele mora. Me diz que não sabe, não quer saber, que estuda a história para esquecer a sua própria. Eu não entro em detalhes. Um bom amigo, embora cru. Nuno, o poeta que assina como "pajé da tribo". e suas feições não nos dizem algo diferente disso: Nuno, o poeta-índio cujo sonho é conhecer (reconhecer, talvez) a América Latina.

Além do telhado avistam-se os reflexos das luzes da cidade em frente, Cachoeira-BA, onde tudo começou. Ainda sabe pouco sobre a cidade. Eu menos ainda.

Durmo na sala, ouvindo os passos das unhas da cadela Helena e sua filhota, que perambulam dentro de casa enquanto Nuno dorme lá fora.

Uma ponte-férrea liga as margens do rio Paraguaçu. Do outro lado está Cachoeira, de rodoviária simples e vielas de fachadas coloridas. Cidade recuperada de paralelepípedos alisados. Em frente à rodoviária, a ferrovia com abóbada de sabor mourisco. O negro árabe, islamizado, esteve aqui. Abóbadas e janelas quase-islâmicas. As cidades pequenas são onde tudo começa. Lenta e cotidianamente.

Casebres coloridos ao pé do morro de São Félix. Casarões à margem do rio. Antigos e sujos casarões. À paróquia Deus Menino, o alto de dobras ensebadas. Dentro, missa de Corpus Christi, onde os fiéis cantam louvores antropofágicos sem saber. “O corpo que era Dele eu comerei agora. O sangue que era Dele, meu será. A vida que era Dele, eu viverei agora. O sonho que era Dele, meu será”. A antropofagia profana dentro do templo sagrado. Um ritual antropofágico.

O rio Paraguaçu separa Cachoeira e São Félix. “O vapor de Cachoeira não navega mais o mar” canta o ilustre Baiano. Foi ali que tudo começou. Os barcos do recôncavo desciam por ali e à margem direita nasceu Cachoeira. À esquerda, São Félix. Cidade que neblina de manhã cedo. Existem hoje duas árvores à beira do Rio Paraguaçu. Névoa, árvores, o rio, a ponte, do outro lado a cidade colorida de Cachoeira. E o movimento antigo do vapor se advinha pelos botecos que se avizinham à rodoviária. Um balaustrada protege o parapeito do rio. Nada ali tem menos de cem anos me diz Nuno Gonçalves.

Um trem lento e cargueiro cruza a ponte São Félix-Cachoeira rumo a Minas Gerais, é o que diz ele. Enquanto o jogo acontece em meio a torcedores do figueirense e do fluminense. Ninguém sabe do que o trem vai cheio. Cotidiano e invisível. Tanto quanto as cachoeiras lindíssimas que existem ali e que eu não vi.

Cidade de paralelepípedos. Aqui, resquícios do Brasil colonial em que o paralelepípedo era o melhor piso para as carroças e carruagens de seu dono e senhor.

Mucambos de sobra, minguados sobrais.

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